O MÉDICO E O SIGILO PROFISSIONAL – PARTE I: LIMITES, CONSEQUÊNCIAS E A OBRIGAÇÃO DE DEPOR

Por Sergio Domingos Pittelli

A proteção à intimidade e à vida privada das pessoas é princípio inscrito na Constituição Federal (CF), art. 5º, X, decorrendo de sua violação o direito à indenização por danos materiais e morais, conforme prescrito na própria norma constitucional.

A violação do sigilo sobre fatos e circunstâncias conhecidos em função do exercício de profissão é considerada crime. A matéria é tipificada no art. 154 do Código Penal (CP), nos seguintes termos: “Revelar alguém, sem justa causa, segredo de que tenha ciência, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”. A pena é de 3 meses a 1 ano ou multa e a instauração da ação depende de representação da parte ofendida.

Os agentes do crime são os “confidentes necessários”[1], entendendo-se por tal, aqueles que se enquadrarem nas categorias listadas no texto do artigo. Deve-se registrar, entretanto, que os auxiliares (secretárias, arquivistas, técnicos em geral – radiologia, enfermagem etc.) também estão sujeitos ao sigilo, por terem acesso à informação em razão de profissão ou ofício.

Por outro lado, e no caso específico do sigilo médico, a confidencialidade não se resume aos fatos da doença e da pessoa do paciente, estendendo-se a todo e qualquer elemento da vida do paciente e família que ele tenha conhecido no exercício da profissão (por exemplo, ao adentrar a casa em visita domiciliar).

A forma pela qual o agente conheceu o fato sigiloso é indiferente: o simples compulsar de um documento, por exemplo (forma como os auxiliares, geralmente, tomam conhecimento) satisfaz a condição.

O núcleo do tipo é o verbo “revelar”, não havendo nenhuma especificação com referência à forma de revelação. Decorre também da redação do artigo que basta que uma terceira pessoa tenha conhecimento do segredo para que o crime esteja consumado. Entretanto, ao leigo, a forma de redação do dispositivo pode se mostrar enganosa por incluir a expressão “possa produzir dano a outrem”. Com efeito, a só possibilidade de que a revelação venha a ser danosa é suficiente para constituir o tipo: não há necessidade de que haja dano concreto. O significado do texto em apreço, portanto, é de que fatos irrelevantes não estão incluídos na hipótese da norma legal, mas, por outro lado, não se exige a concretização do dano, mas apenas a revelação do fato (relevante) e correspondente violação do sigilo.

É exigível o nexo de causalidade entre o conhecimento do fato e o exercício de profissão, ofício etc. Revelação de fato “íntimo” sabido fora desta condição, enseja reparação exclusivamente na esfera cível (CF, art. 5º, X). A implicação do conteúdo desta asserção para o médico é óbvia e importante: até que ponto, fato sabido em conversa entre profissionais dentro de um hospital é enquadrável ou não na norma?

Por último, característica importante é que o tipo penal em questão só admite a modalidade dolosa (Damásio, op. cit.), ou seja, vazamento não intencional de informação (exemplo: esquecimento de um prontuário em local público) não é contemplada pela norma, resumindo-se eventual reparação, nessas condições, exclusivamente à esfera cível.

No que respeita ao médico, o atual Código e Ética Médica (CEM) dedica um capítulo inteiro ao tema (IX), destacando-se, neste ponto, o art. 73: “[é vedado ao médico:] Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude de exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou autorização expressa do paciente”.

Voltaremos a discutir com mais detalhes os dois artigos no que se refere ao termo “justa causa”, bem como o supracitado capítulo IX do CEM. Por ora, entretanto, cumpre registrar que, em decorrência e coerentemente com a vedação do art. 154 do CP, o ordenamento jurídico brasileiro protege os profissionais em situações específicas, exonerando-os de depor como testemunhas de fatos dos quais tenham tido conhecimento no exercício da profissão. Assim estabelecem o Código Civil (CC), art. 229: “Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I –  a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo (…)””, o Código de Processo Civil (CPC), art. 448: “A Testemunha não é obrigada a depor de fatos: (…) II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo ” e o próprio Código de Processo Penal (CPP), art. 207: “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar seu testemunho”.

A força do “direito de não testemunhar” exsurge de modo insopitável no texto deste último artigo, do qual se divisam dois elementos igualmente “contundentes”: o direito de não testemunhar se estende inclusive a matéria de ordem penal e prevalece mesmo que o titular do direito tenha exonerado o profissional da sujeição ao sigilo, restando apenas e tão somente a este o poder de decisão.

O CEM atual (Resolução 2217/2018) possui orientação dirigida aos médicos, nesse sentido específico, expresso na alínea “b” do parágrafo único do art. 73, quando, ao vetar o rompimento do sigilo na hipótese de ser o profissional intimado na condição de testemunha, determina que ele compareça perante a autoridade e declare seu impedimento.

É importante enfatizar a necessidade do comparecimento, pois do contrário, o profissional estaria violando o art. 330 do CP (“desobediência a ordem legal”); assim, é preciso diferenciar o recusar-se a testemunhar (um direito) do não comparecimento (“desobediência” – ilícito penal). Do ponto de vista prático, é interessante adiantar-se ao dia da audiência, protocolando petição fundamentada na qual a autoridade é informada da intenção da testemunha. Em alguns casos consegue-se inclusive evitar o comparecimento, por dispensa da própria autoridade.

Antes de passarmos à parte final deste primeiro texto, comentando a normatização dada ao assunto pelo CFM, e com a finalidade de esgotar o tema “direito de não depor” na esfera legal, cumpre comentar o artigo 66 da Lei 3688 de 03/10/1941 (Lei das Contravenções Penais – LCP).

Dispõe o art. em apreço: “Deixar de comunicar à autoridade competente (…) II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal. Pena – multa de trezentos a três mil cruzeiros.

Vejamos cada um dos elementos que compõem o tipo.

A conduta é “deixar de comunicar”, portanto, a norma obriga à comunicação de algum fato. O fato, como está claro no texto, é um crime de ação pública de que o profissional (não apenas médico!) tenha tido conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária. Mas em seguida vem o ponto que interessa neste texto: a norma excepciona os casos em que a comunicação possa prejudicar o próprio paciente, no sentido de expô-lo a procedimento criminal.

Ou seja, a obrigação ao sigilo permanece mesmo nos casos em que o paciente “confesse” ao profissional alguma conduta criminalmente ilícita que tenha praticado. A obrigação de comunicar, portanto, refere-se a fatos de terceiras pessoas, não a fatos do paciente.

A norma em apreço, assim como todas as demais normas protetivas do ordenamento jurídico, exprime, na ação de defender a intimidade da relação médico-paciente, a finalidade de garantir a este último a tranqüilidade para que se abra e se confie plenamente ao seu interlocutor, condição considerada necessária por evitar que eventuais omissões de informação gerem danos ao diagnóstico/tratamento.

A proteção da intimidade da relação médico-paciente cumpre função social de inegável importância e erige-se em direito de ordem pública, vez que de interesse coletivo, mas ao observador atento não terá escapado a ocorrência de problema seriíssimo derivado, sobretudo do art. da LCP que se acaba de comentar: como deve comportar-se o profissional nos casos em que o paciente confessa ser um “serial killer’ ou um pedófilo (ou qualquer outra forma de conduta criminosa, sobretudo se do tipo repetida), citando exemplos recentes e continuados de práticas ilícitas?

O assunto será objeto do segundo texto desta série relativa ao sigilo profissional.

Por ora, fecharemos a presente resenha analisando a normatização ético-profissional baixada pelo sistema conselhal médico sobre o assunto. Esta se materializa no Código de Ética Médica (CEM) e em resoluções e pareceres.

Conforme adiantado acima, o CEM dedica ao tema todo o capítulo IX, constituído de sete artigos, além do item XI do capítulo I – “Princípios Fundamentais” (“O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei”). Sua análise é importante porque, em função da natureza e da especialização do órgão normatizador, aborda elementos específicos, não tratados pela legislação geral.

O artigo 73 reproduz o conteúdo da legislação já comentada, apresentando, entretanto, com relação a ela, uma vantagem na redação, vez que lista e explicita as situações de excepcionamento, circunstância não presente na legislação, a não ser por entendimento combinado de dispositivos. A análise dessa lista de exceções será objeto do próximo texto.

Em seu parágrafo único, o dispositivo, adaptando-se à natureza do destinatário do comando (médicos) e/ou dos fatos envolvidos, “lembra” que o sigilo se estende aos fatos de conhecimento público e aos mortos. Quanto ao primeiro, fica vedado ao médico liberar informações de pessoas ainda que os fatos sejam noticiados pelos meios de comunicação (personalidades famosas ou casos de repercussão/comoção social como determinados assassinatos etc.), podendo fazê-lo apenas obedecendo a determinadas normas. Uma variante desta figura vem a ser a atividade pericial. Ao realizar uma perícia, o médico examina o periciando e tem o direito de ter acesso a toda e qualquer informação pertinente ao seu mister. Após as atividades de exame propriamente ditas, que em nada diferem do exame clínico comum, o perito elabora um laudo que é entregue ao cartório e juntado aos autos de um processo que, salvo raras exceções, é público. Nem por isso o médico está autorizado a dar informações a respeito de fatos dos quais tomou conhecimento em função da perícia, a não ser nos estritos limites de suas obrigações como perito, no âmbito do mesmo processo.

O artigo 74 proíbe ao médico revelar segredo profissional de menor de idade, inclusive para os pais e/ou responsáveis legais, nos casos em que o jovem “tenha capacidade de avaliar seu problema e de conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-lo”. Kfouri Neto[2], citando Walter Ceneviva, discorda da disposição, argumentando com o fato de que a CF atribui aos pais ou responsáveis a responsabilidade pela educação e que com o dispositivo em apreço, o CFM pretende que o médico os substitua nessa função. Concordamos com a crítica e recomendamos aos médicos cautela extra ao lidar com a questão.

O artigo 75 trata da referência a casos clínicos identificáveis, exibição de pacientes ou retratos em meios de comunicação leigos. Pode-se dizer aqui, que são hipóteses de “violação indireta’ do sigilo, para as quais o médico deve estar atento, pois pode fazê-lo sem perceber. Um exemplo típico é o caso em que profissionais notoriamente ligados a determinadas especialidades ou mesmo tratamentos específicos (como a AIDS, por exemplo) referirem-se a determinadas pessoas conhecidas publicamente, como sendo seus pacientes.

O artigo 76 trata do sigilo médico na esfera da medicina do trabalho, registrando-se a importância de manter sigilo inclusive e sobretudo com referência ao empregador.

O artigo 77 trata de informações prestadas a empresas seguradoras, estabelecendo que referida informação deve ser restrita àquela constante do atestado de óbito. A finalidade é óbvia: informações confidenciais podem permitir à empresa seguradora negar o pagamento, e o médico, nessa condição, teria concorrido para prejudicar aquele que a ele se confiou. Já o atestado de óbito é documento público cuja emissão é de natureza obrigatória, motivos pelos quais constitui uma das hipóteses de permissão legal de quebra do sigilo.

O artigo 78 imputa ao médico a responsabilidade pelo zelo referente aos seus auxiliares e alunos.

Finalmente, o artigo 79 proíbe ao médico valer-se de dados do prontuário para proceder à cobrança de honorários. O comando deste dispositivo alcança também o uso do prontuário em casos de ação trabalhista do médico contra a empresa de atendimento médico.

No Código de Ética Médica de 1988, Res. CFM 1246/88, havia o artigo 108 que proibia o médico de facilitar o acesso a documentos médicos por pessoas funcionalmente não obrigadas ao sigilo. Como exemplos podemos lembrar jornalistas ou pessoas interessadas por qualquer motivo (advogados, ex-cônjuges etc.). Este dispositivo foi suprimido já no Código de Ética Médica de 2009 (Res. 1931/2009). Não sabemos os fundamentos da supressão.

Além do CEM, o sistema conselhal vale-se de resoluções para complementar a normatização da conduta médica. A pesquisa com o descritor “sigilo médico” no site do CFM informa 7 resoluções, sendo uma delas o próprio CEM. Das demais, apenas a nº 1605/2000 (inspirada e baseada no Parecer 1973/2000) tem como objeto precípuo o sigilo, prescrevendo ao profissional o comportamento devido na guarda do prontuário e na eventual entrega para autoridades. As demais resvalam pelo tema ao tratar de objetos diversos: 1627/2001 define o ato médico; 1643/2002 trata da telemedicina e a Resolução 1833/2008 regulamenta a organização de serviços médicos nas instituições esportivas.

Ao terminar, chamamos a atenção do leitor para o fato de que o objeto deste texto foi o sigilo profissional com referência à pessoa física do médico; diversa (embora parecida) é a situação quando se trata de instituições e ainda diversa é a situação no que respeita ao prontuário médico, valendo esta observação tanto para o médico quanto as instituições. Voltaremos ao assunto em outro texto, mas apenas adiantamos por agora que o prontuário é propriedade do paciente e em assim sendo, caso este queira, não pode ser negado, não restando a alternativa de não se manifestar, tal como no caso de depoimento pessoal do profissional.

No próximo texto trataremos das hipóteses de excepcionamento das normas referentes ao sigilo (art. 154 do CP e73 do CEM): justa causa (“motivo justo” na redação deste dispositivo), dever legal e autorização expressa do paciente.


[1] Damásio E. de Jesus – Direito Penal.

[2] Responsabilidade Civil do Médico – 5ª Ed., 2003, p. 184.

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