Há três situações em que, de alguma forma, pode ou deve o médico expor dados a respeito do paciente que normalmente se incluiriam no âmbito do sigilo. São: a autorização do paciente ou seu representante legal, o dever legal e a justa causa. As três hipóteses são previstas no art. 73 do Código de Ética Médica (CEM) sendo a expressão justa causa substituída pela expressão motivo justo: “[é vedado ao médico] Revelar o fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”.
A vedação que caracteriza o dispositivo já foi tratada em toda a sua extensão no texto anterior. O mais “contundente” dado lá apontado vem a ser a exoneração do profissional da obrigação de testemunhar, ainda que a matéria seja de natureza penal e o interessado o tenha dispensado do sigilo (neste sentido, cf. art. 207 do Código de Processo Penal, transcrito na primeira parte). Cremos que nada mais resta a ser aduzido a respeito.
Há três hipóteses em que o dever legal exige e/ou permite ao médico que este não se atenha ao sigilo: o atestado de óbito, as doenças de notificação compulsória e as perícias.
O fundamento legal, tanto para a existência quanto para a obrigatoriedade do atestado de óbito é dado conjuntamente pelas Leis 6015/1973 (lei dos registros públicos), pelo Código de Processo Civil (CPC) e pelo Decreto Federal nº 20.931/1932[1]
A Lei 6015/73 define, no art. 1º, os registros públicos, referindo-se aos registros referentes às pessoas naturais no inciso primeiro deste artigo. Depois, em seu artigo 78 dispõe expressamente: “Art. 78. Nenhum enterramento será feito sem certidão de oficial de registro do lugar do falecimento, extraída após a lavratura do assentamento de óbito, em vista de atestado do médico, se houver no lugar, ou, em caso contrário, de duas pessoas qualificadas, que tiverem presenciado ou verificado a morte” (grifos nossos). Até aqui podemos concluir ser o atestado de óbito, além de documento oficial (art. 1º, I), requisito para o sepultamento (art. 78).
O CPC 2015, em seu art. 615, par. único, por sua vez, determina que a abertura do inventário se faça com a apresentação da certidão de óbito.
Os dois dispositivos caracterizam a certidão (extraída de um atestado) como pré-requisito para o sepultamento e abertura do inventário e por estas duas exigências, já se pode entender pela obrigatoriedade desse documento. Nada indica neles, entretanto, que o médico esteja obrigado ou mesmo autorizado a lançar no documento em apreço qualquer dado a respeito da saúde do paciente (poderia, por exemplo, simplesmente declarar que a pessoa está morta, sem dizer a causa).
Completa então a tríade de dispositivos legais referentes ao atestado de óbito, explicitando a obrigatoriedade da informação sanitária, o art. 15 do já citado Decreto Federal 20.931/32, cujos termos, são: “Art. 15: São deveres do médico: – omissis – e) atestar o óbito em impressos fornecidos pelas repartições sanitárias com a exata “causa mortis” de acordo com a nomenclatura nosológica internacional de estatística demógrafo-sanitária” (grifos nossos).
Conclui-se assim sobre a obrigatoriedade legal imposta ao médico de, não apenas fornecer o atestado de óbito, mas ainda lançar nele a exata causa da morte.
As notificações compulsórias de determinadas doenças são objeto da Lei 6.259/1975, que dispõe sobre a organização das ações de vigilância epidemiológica. O assunto é tratado nos art. 7º a 12, devendo relevar-se três fatos: a notificação é feita à autoridade sanitária (art. 7º) apenas e tão somente; os médicos e demais profissionais de saúde (entre outros agentes) estão obrigados à notificação (art. 8º), sob pena de punição (art. 14); a autoridade que recebe a notificação está sujeita ao sigilo (art. 10, caput e parágrafo único).
Embora não esteja dito de forma explícita, do último dispositivo citado no parágrafo anterior, que obriga ao sigilo a própria autoridade destinatária da comunicação, concluímos que o profissional notificante também está preso ao sigilo, ou seja, a supressão da obrigação de sigilo diz respeito exclusivamente à comunicação à autoridade sanitária, constituindo violação qualquer outra comunicação a terceiros que não a referida autoridade.
Registre-se, por oportuno, neste ponto, que este princípio é válido para todas as formas de excepcionamento do dever de sigilo: autorização do interessado, atestado de óbito, notificação compulsória, perícia e justa causa. Em qualquer dessas hipóteses, o fato de haver uma circunstância específica pela qual o profissional médico está autorizado ou obrigado a revelar dados sigilosos, não o autoriza a abrir o sigilo para terceiros não incluídos na hipótese, ou, dito de outro modo, a dar publicidade em qualquer grau ao fato, fora dos limites da hipótese normativa.
Não há propriamente um dispositivo legal que fundamente a permissão de quebra do sigilo nos casos de perícia. É a própria natureza da atividade, que a justifica. Com efeito, a perícia constitui prova em processos, e, nessa condição, há destinatários naturais para o trabalho do perito, quais sejam, as partes (autor e réu), o Ministério Público, quando for o caso, e, obviamente, o juiz.
Indubitavelmente, a justa causa é a motivação mais interessante, complexa e polêmica de todas as hipóteses de excepcionamento.
Justa causa pode ser considerada o que comumente se denomina em Direito, um “standard jurídico”, conceito cujo entendimento é necessário para que se possa entender o que seja justa causa.
Maria Helena Diniz[2] utiliza-se de quatro formas para caracterizá-lo: 1. critério básico de avaliação de conceitos jurídicos indefinidos e variáveis no tempo e no espaço; 2. regra que concede ao apreciador uma certa margem de apreciação, dando-lhe o poder de discricionariedade; 3. critério avaliativo de relações jurídicas concretas que exprime a conduta social média e deriva da lei ou da jurisprudência; 4. conduta média da pessoa que atua como referencial para a decisão judicial sobre fatos novos não previstos na lei.
Das inúmeras formas de definir o conceito (o que torna o “standard jurídico”, um verdadeiro standard jurídico) ressalta o elemento de imprecisão, de discricionariedade do que avalia, da inexistência de precisa definição legal, de elemento “médio” (em termos de comportamento) como um dos critérios definidores.
A justa causa possui todos os elementos acima listados. Vejamos a definição que lhe dá Genival Veloso França[3]: “Por justa causa entende-se o interesse de ordem moral ou social que autorize o não cumprimento de uma norma, contanto que os motivos apresentados sejam, na verdade, justificadores de tal violação”. De início ressalte-se o fundamento na ordem moral e social e não na lei (tanto que autoriza o não cumprimento de uma norma), bem como a discricionariedade, uma vez que fica a critério do(s) agente(s) decidir se os motivos justificam ou não a violação da norma. Destes dois elementos exsurge claramente, por sua vez, o caráter de imprecisão, vez que normas morais e sociais não são elementos claros e precisos por sua própria natureza, tanto quanto a capacidade de julgar do ser humano, inarredavelmente imersa em subjetividade.
Em face do enunciado do art. 66 da Lei de Contravenções Penais (Deixar de comunicar à autoridade competente (…) II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal. Pena – multa de trezentos a três mil cruzeiros), a questão da violação do segredo por justa causa apresenta-se de decisão particularmente complicada quando o paciente é agente de conduta delituosa, uma vez que o artigo em questão não excepciona a regra para o próprio paciente, nos casos em que a violação do segredo possa prejudicá-lo juridicamente. Sendo assim, o profissional que o fizesse estaria, em tese, incorrendo na hipótese do art. 154 do Código Penal (CP).
A questão acima, no que respeita especificamente à pedofilia, está tratada no Parecer/Consulta nº 51.676/03 do CRM e reportada pelo Dr. Luis Carlos Aiex Alves[4], psiquiatra e membro do CRM/SP. As considerações seguintes se fazem com base em seu texto.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina, em seu art. 245: “Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena – multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência”
Este enunciado gera dúvida, dando a impressão a alguns, à primeira vista, de que haveria a obrigatoriedade, pura e simples, por parte dos profissionais, de denunciar o pedófilo. Tanto que a Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas emitiu um parecer no qual concluía da forma acima exposta. Consultado, o CRM/SP discordou em parte das conclusões da CoBi HC.
Por um lado, fazendo a exegese do texto legal, manifestou-se no sentido de o dispositivo obriga o profissional que atende a criança e não aquele que atende o pedófilo. Por outro, conjecturando em termos éticos, de confidencialidade e da relação médico-paciente, concluiu que a postura rígida de denúncia levaria a afugentar os pacientes pedófilos do tratamento, dando mais peso ao aspecto de ilicitude jurídica do que à natureza de doença da pedofilia. Conclui pela inexistência de dever legal do médico de denunciar seu paciente, recomendando que o faça com fundamento no princípio da justa causa, julgando caso a caso.
Situação semelhante se não idêntica é a do portador do vírus da AIDS que se recusa a informar os parceiros sobre seu diagnóstico e não toma medidas no sentido de evitar sua propagação por meio de relações sexuais. Dizemos que a situação pode ser idêntica não apenas porque o sigilo violado no caso refere-se ao próprio paciente, mas também porque pode prejudicá-lo juridicamente, uma vez que a conduta em apreço pode eventualmente ser enquadrada na hipótese do art. 130 (“perigo de contágio venéreo”) ou mesmo do art. 131 (perigo de contágio de moléstia grave) do CP. Também esta circunstância já foi tratada pelo sistema conselhal médico: a Resolução CFM 1665/2003, que dispõe sobre aspectos éticos relativos ao tratamento da AIDS, estabelece em seu artigo 10º que o sigilo poderá ser violado “nos casos determinados por lei, por justa causa e por autorização expressa do paciente”.
Citaremos como um último exemplo de situação prevista e tratada normativamente, na qual a justa causa poderá ser o fundamento para a violação do sigilo, aquela expressa no art. 76 do Código de Ética Médica: “[é vedado ao médico] Revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade”. A ressalva ao final é um caso típico de justa causa.
Não temos conhecimento de nenhum julgado, tanto na esfera cível quanto criminal, a respeito de violações de segredo profissional médico com fundamento na justa causa. Entretanto, a matéria, por óbvios motivos, requer cautela. Entendemos que, frente a situação desta natureza, deve o médico aconselhar-se com profissional do Direito, não estando excluída, inclusive, consulta específica ao CRM, antes de qualquer medida.
[1] Embora se denomine Decreto, trata-se, na verdade, de diploma legal equivalente a lei, de acordo com a denominação da época.
[2] Dicionário Jurídico – São Paulo, Saraiva, 2ª Ed., 2005.
[3] Direito Médico – São Paulo, BYK Fundo Editorial Procienx, 8ª Ed., 2003
[4] O Sigilo Médico em Caso de Paciente Pedófilo e o âmbito da responsabilidade do psiquiatra In Ética e Psiquiatria – São Paulo, CREMESP, 2007.