O MÉDICO E O SIGILO PROFISSIONAL – PARTE III: O PRONTUÁRIO MÉDICO

Por Sergio Domingos Pittelli

Conforme afirmamos em nossos textos anteriores, são diversas as responsabilidades do médico quando se comparam a obrigação ao sigilo pessoal referente às informações que obteve no exercício profissional e a obrigação de fornecer o prontuário do paciente.

Para a primeira hipótese vigem todos os mecanismos já elencados que eximem o médico da obrigação de depor ou revelar por qualquer meio o sigilo, mesmo perante a autorização do paciente, protegendo-o legalmente de eventuais constrangimentos por parte de autoridades.

Com relação ao prontuário divisamos quatro situações claramente diferentes que devem ser tratadas no presente texto.

A primeira corresponde às situações em que o próprio paciente requer o fornecimento do prontuário. Nessa hipótese não pode haver a menor dúvida a respeito da obrigação do profissional ou instituição médico-hospitalar de entregar cópia integral do documento, uma vez que é ponto pacífico serem profissionais e instituições meros guardiães das informações contidas neste documento, as quais pertencem verdadeiramente ao paciente. Desconhecemos qualquer dispositivo legal que assim estabeleça, sendo esta uma típica construção doutrinária e jurisprudencial. Mesmo a lei 8.159/1991 (que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados) nada trata nesse sentido.

Em nível infralegal, o Art. 88 do Código de Ética Médica (CEM – Res. CFM 2.217/2018) estabelece a obrigatoriedade de fornecimento de fornecimento de cópias e/ou liberação do acesso ao prontuário por parte do paciente ou representante legal.

Ainda em nível infralegal, a Resolução CFM 1605/2000 estabelece que o médico poderá (o termo usado é “poderá” mas entendemos que o certo seria “deverá”) fornecer o prontuário diretamente para autoridade judicial/policial se houver autorização expressa do paciente (art. 5º) ou entregá-lo diretamente ao próprio paciente (art. 6º) caso este o solicite.

Como se vê, não há maiores questões quando o próprio interessado, seja diretamente, seja indiretamente, via autoridade, autoriza ou mesmo solicita o prontuário.

Uma segunda situação refere-se ao uso do prontuário como meio de prova, em Juízo, em defesa do próprio médico ou instituição hospitalar, quando processado, seja na esfera cível, seja na esfera criminal, por “erro médico”. Aqui, também, embora não haja nenhum dispositivo legal que assim o determine, não resta dúvida de que os acusados podem lançar mão do prontuário, juntando-o aos autos, com fundamento no direito constitucional à ampla defesa e ao contraditório (art. 5º, LV). Também não resta a menor dúvida quanto ao fato que “o direito ao devido processo legal” (com suas duas vertentes inerentes e inafastáveis: o direito à ampla defesa e o direito ao contraditório) prevalece sobre o direito à privacidade da parte contrária ou da vítima, nos casos penais.

Ambas as hipóteses (direito do uso do prontuário e obrigação de manutenção do sigilo) estão presentes em dois dispositivos normativos do Conselho Federal de Medicina. O caput do Art. 89 do CEM autoriza o uso para a própria defesa e o § 2º deste dispositivo determina que o médico ou hospital requeira ao Juízo a determinação de segredo de justiça. O assunto também é tratado na já citada Resolução 1605/2000 do CFM a qual, em seu art. 7º estabelece que o médico poderá fazê-lo, devendo ter, entretanto, o cuidado de requerer o segredo de justiça: “Para sua defesa judicial, o médico poderá apresentar a ficha ou prontuário médico à autoridade competente, solicitando que a matéria seja mantida em segredo de justiça”.

Esta questão também se nos apresenta pacífica, mas há um senão. Em nossa experiência profissional temo-nos deparado freqüentemente com recusa da instituição hospitalar em fornecer o prontuário nos casos em que apenas o médico é processado. Alega-se exatamente a defesa do sigilo do paciente. Nosso entendimento é que tal alegação não se sustenta exatamente por estar o direito do médico amparado na Constituição. Falta, no nosso entendimento, regulamentação explícita dessa questão por parte do CFM, no sentido de obrigar o hospital a fornecer o prontuário ao médico. Até porque a autoridade judicial tem o poder de requisitar os documentos à revelia da vontade, seja do próprio paciente, seja da instituição, servindo a recusa do hospital apenas para promover delongas no andamento do processo e dificuldades na elaboração da Contestação.

A terceira hipótese, já tratada em texto anterior, diz respeito ao uso do prontuário médico como meio de prova para fins de cobrança de honorários. Tal hipótese não constitui justa causa e é vedada pelo art. 79 do CEM,   conforme se depreende de sua redação. Temos conhecimento de caso em que profissional médico utilizou-se de vários prontuários em processo trabalhista contra instituição de saúde, tendo sido denunciado ao CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA (CRM) pela parte reclamada e subseqüentemente submetido a processo ético-disciplinar.

A quarta hipótese é aquela que nos parece mais problemática. Trata-se de requisição do prontuário médico da vítima por parte de autoridade policial ou judicial em inquéritos ou ações penais.

Em princípio, estando a vítima viva e autorizando sua requisição, cairíamos na primeira hipótese acima apontada. O mesmo se daria, entendemos, nos casos em que a vítima tenha falecido mas nos quais parente devidamente legitimado (herdeiro/sucessor) autorizasse.

O fato é que até hoje nunca nos deparamos com um medida desta natureza tomada por autoridade, seja policial, seja judicial. Resta, portanto, a questão de saber até onde vão os poderes da autoridade para requisitar o documento por conta própria, e onde começa o constrangimento ilegal.

As leis que tratam do sigilo e do direito ao sigilo ou intimidade não abordam essa questão de modo direto. No geral, os dispositivos legais são protetivos do direito (por exemplo, o art. 5º da CONSTITUIÇÃO FEDERAL – CF ou nos inúmeros artigos por nós citados nos textos precedentes) mas não tratam de hipóteses de excepcionamento para as circunstâncias abordadas neste texto.

Em tese, médicos e instituições (estas por intermédio de seus diretores) estão sujeitos ao determinado pelo art. 66 da LEI DE COTRAVENÇÕES PENAIS (LCP). Como se recorda, este dispositivo (inciso II do caput) obriga os profissionais de saúde a comunicar à autoridade crime de ação pública de que tenham tomado conhecimento no exercício da profissão, desde que tal comunicação não prejudique criminalmente seu paciente. Ora, no crimes nos quais se requisita o prontuário da vítima, esta não será prejudicada pela comunicação, antes o contrário. Assim sendo, não haveria motivo para a negativa e esta poderia, mesmo, ser entendida como tentativa de obstrução da Justiça ou acobertamento de crime.

Ocorre que no prontuário médico podem encontrar-se muitas outras informações a respeito do paciente além daquelas estritamente ligadas à solução da causa e o fato é que existe vasta produção doutrinária e jurisprudencial (inclusive com habeas corpus pelo STF e mandado de segurança) no sentido de que profissionais e instituições não podem ser constrangidos pela autoridade a entregar o prontuário, devendo fazê-lo exclusivamente a médico perito designado pelo juiz, que dele extrairá apenas o que interessa para o caso, ou, eventualmente, com a elaboração, e entrega à autoridade, de relatório por parte de médico da própria instituição.

Há inúmeras citações nesse sentido no Parecer – Consulta nº 1973/2000 do CFM que embasou a Resolução 1605/2000, bem como em Kfoury Neto[1].

Em consonância com essa ordem de idéias, determina o CFM no art. 4º da já citada Resolução 1605/2000: “Se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento”.

Embora o texto se refira a autoridade judicial, não vemos motivos para dúvida de que sua hipótese se aplica também a autoridade policial.

Estes são, em síntese, os elementos que dizem respeito à entrega de prontuário médico a autoridades judiciais e policiais.

Reiteramos, ao finalizar, que, havendo autorização por parte do titular do sigilo, não só não há impedimento à entrega, mas configura-se mesmo obrigação de fazê-lo.


[1] KFOURY NETO, M. Responsabilidade Civil do Médico. São Paulo, RT, 2003, 5ª ed.

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